A pandemia da doença do Coronavírus 2019 (COVID-19) trouxe mudanças significativas para a sociedade, desde esforços globais e nacionais para controlar a propagação respiratória do vírus (máscaras, distanciamento social, medidas de quarentena e bloqueio) até a reestruturação dos sistemas de assistência médica.
Ao redirecionar os recursos médicos, a resposta à pandemia afetou os programas de vigilância, diagnóstico e vacinação para uma série de doenças imunopreveníveis, incluindo a doença meningocócica invasiva (DMI).
Doença meningocócica invasiva e epidemiologia
A doença meningocócica invasiva pode ser devastadora, pois se desenvolve rapidamente, com sintomas precoces e inespecíficos que podem progredir rapidamente para doença fulminante e levar à morte dentro de 24 a 48 h após o início. Muitas vezes as crianças que sobrevivem ficam com sequelas graves, como perda de visão, audição e amputação de membros.
Embora incomum, a doença meningocócica invasiva causa a morte em crianças e adolescentes em 5 a 10% dos casos [1]. A maioria dos casos da doença meningocócica invasiva na Europa, Austrália, Nova Zelândia, e grande parte das Américas é causada por bactérias do sorogrupo B Neisseria meningitidis [2].
Estudos epidemiológicos estimam que 1,2 milhão de casos ocorram anualmente em todo o mundo, com 135.000 mortes relacionadas à DMI [3]. Neste sentido, uma iniciativa liderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) abrangendo uma parceria multi-organizacional está atualmente em andamento e visa 'derrotar' a meningite até o ano de 2030 [4].
Sorogrupos da N. meningitidis e vacinas
A N. meningitidis é subdividida em sorogrupos baseados nos polissacarídeos capsulares distintos, seis dos quais (A, B, C, W, X e Y) causam a maioria dos casos de DMI em todo o mundo [3].
Para estes sorogrupos foram desenvolvidas vacinas, que já demonstraram eficácia na prevenção da doença em populações suscetíveis.
Em particular, o desenvolvimento de vacinas conjugadas, com proteínas transportadoras covalentemente ligadas a polissacarídeos capsulares bacterianos, resultou em vacinas mais capazes de induzir respostas imunes em bebês e crianças do que as vacinas compostas por polissacarídeos purificados [5].
Inicialmente, as vacinas meningocócicas monovalentes foram desenvolvidas para prevenir doença causada por um único sorogrupo, mas a expansão e/ou persistência de sorogrupos não cobertos por essas vacinas e as consequentes mudanças na epidemiologia levaram à necessidade de vacinas com maior cobertura de sorogrupo [6].
Várias vacinas conjugadas MenACWY e MenB estão disponíveis e usadas em programas nacionais de imunização em países em todo o mundo para controlar os surtos [7].
Doença meningocócica invasiva e COVID-19
Muitos países suspenderam temporariamente os programas de imunização durante os estágios iniciais da pandemia para minimizar o risco de transmissão do SARS-CoV-2.
Nos primeiros cinco meses da pandemia global, 27 países adiaram as campanhas planejadas de vacina contra o sarampo ou contendo o sarampo; sete países interromperam temporariamente a vacinação contra a poliomielite; sete países suspenderam a imunização contra o tétano-difteria; e cinco países suspenderam a vacinação oral contra a cólera [8].
Em muitos outros países, embora os programas de vacinação não tenham parado, a aceitação da vacina diminuiu devido a medidas de contenção. Muitos pais não tinham certeza se as vacinações estavam ocorrendo e tiveram dificuldades em marcar consultas com o fechamento generalizado das escolas.
Em relação à vacinação meningocócica, dados não publicados de uma pesquisa online realizada em 8 países (Estados Unidos, Reino Unido, Itália, França, Alemanha, Argentina, Brasil e Austrália) indicaram que cerca de 50% dos pais atrasaram ou cancelaram uma consulta programada de vacinação meningocócica para seus filhos durante a pandemia do COVID-19 [9].
Esses pais selecionaram os regulamentos de bloqueio (63%) e as preocupações em torno da contaminação com SARS-CoV-2 (33%) como as principais razões para essa interrupção da vacinação [10].
O impacto da pandemia do COVID-19 em programas de vacinação de rotina na Europa
Esse efeito também foi destacado na Inglaterra, onde o número das primeiras doses da vacina hexavalente, dadas na mesma visita que a vacina MenB, caiu quando as medidas de distanciamento social foram aplicadas em março de 2020 [9].
Na França, a vacinação com a vacina conjugada MenC foi afetada durante o período de 16 de março a 20 de maio de 2020. Após comunicações focadas em informar os pais sobre a importância da vacinação meningocócica, a cobertura com a dose inicial de 5 meses retornou aos níveis pré-pandêmicos [11].
No entanto, a redução na captação do reforço de 12 meses com MenC foi significativamente menor do que no mesmo período de 2019 (-14%) [11].
O impacto da pandemia do COVID-19 em programas de vacinação de rotina no Sudeste Asiático e Pacífico Ocidental
No total, 95% (18/19) dos países incluídos nestas áreas relataram interrupções da vacinação entre o início da pandemia e 1 de junho de 2020. E em 13 países, a entrega de vacinas meningocócicas A (MenA ou MenACWY) foi impactada [12].
Ainda em junho de 2020, as taxas de cobertura para a vacinação MenACWY não haviam retornado aos níveis pré-COVID-19 [12].
As práticas de imunização também foram interrompidas em outras regiões, incluindo a África. No entanto, a interrupção de curto prazo da vacinação meningocócica do sorogrupo A não teve efeito imediato sobre a doença devido à persistência de benefícios diretos e indiretos de campanhas anteriores de vacinação em massa da MenA para pessoas de 1 a 29 anos [13].
O impacto da pandemia do COVID-19 em programas de vacinação de rotina no Brasil
Na América do Sul, devido à pandemia COVID-19, a vacina meningocócica foi menor. No Brasil, a vacinação MenC, com cobertura de 96% em 2014, vem sofrendo quedas nas suas taxas de cobertura, caindo para 78% em 2020 [14].
Num artigo publicado na revista Vaccine X, os autores avaliaram o impacto da pandemia do COVID-19 na taxa de doses da vacina MenC aplicadas no Brasil durante a pandemia [15].
A partir de dados coletados por meio do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (IS-NIP), os autores coletaram os números de doses da vacina meningocócica C conjugada e administradas de março de 2019 a dezembro de 2020.
O estudo mostrou que a pandemia de COVID-19 teve impacto negativo no número de doses da vacina MenC administradas nas regiões norte e sul do Brasil e em onze estados brasileiros [15].
Dentre todos os desafios vivenciados durante a pandemia do COVID-19, encontra-se a redução da cobertura vacinal MenC, o que, consequentemente, pode levar ao aumento das taxas de infecção meningocócica no país.
Em suma, o início de 2020, com a pandemia do COVID-19, trouxe um novo conjunto de desafios para vigilância, tratamento e prevenção da doença meningocócica invasiva.
Neste sentido, órgãos internacionais e nacionais recomendam a manutenção da adoção de ações de imunização para evitar o surgimento de doenças imunopreveníveis que estavam sob controle até o momento.
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Referências:
[1] B Wang, R Santoreneos, L Giles, H Haji Ali Afzali, H Marshall Case fatality rates of invasive meningococcal disease by serogroup and age: a systematic review and meta-analysis Vaccine,37 (2019), pp. 2768-2782.
[2] SR Parikh, H Campbell, JA Bettinger, et al. The everchanging epidemiology of meningococcal disease worldwide and the potential for prevention through vaccination.J Infect, 81 (2020), pp. 483-498.
[3] R.Z. Jafri, A. Ali, N.E. Messonnier, et al. Global epidemiology of invasive meningococcal disease Popul Health Metr, 11 (1) (2013), p. 17.
[4] World Health Organisation Initiatives. Defeating meningitis by 2030. Available at: https://www.who.int/initiatives/defeating-meningitis-by-2030.
[5] A. Terranella, A. Cohn, T. Clark Meningococcal conjugate vaccines: optimizing global impact
Infect Drug Resist, 4 (2011), pp. 161-169.
[6] Close R. Booy, A. Gentile, M. Nissen, J. Whelan, V. Abitbol Recent changes in the epidemiology of Neisseria meningitidis serogroup W across the world, current vaccination policy choices and possible future strategies. Hum Vaccin Immunother, 15 (2) (2019), pp. 470-480.
[7] R. Borrow, P. Alarcón, J. Carlos, et al. The global meningococcal initiative: global epidemiology, the impact of vaccines on meningococcal disease and the importance of herd protection. Expert Rev Vaccines, 16 (4) (2017), pp. 313-328.
[9] Alderson MR, Arkwright PD, Bai X, Black S, Borrow R, Caugant DA, Dinleyici EC, Harrison LH, Lucidarme J, McNamara LA, Meiring S, Sáfadi MAP, Shao Z, Stephens DS, Taha MK, Vazquez J, Zhu B, Collaborators G. Surveillance and control of meningococcal disease in the COVID-19 era: A Global Meningococcal Initiative review. J Infect. 2022 Mar;84(3):289-296. doi: 10.1016/j.jinf.2021.11.016. Epub 2021 Nov 24. PMID: 34838594; PMCID: PMC8611823.
[10] GSK press release 2021; https://www.gsk.com/en-gb/media/press-releases/half-of-parents-surveyed-either-cancelled-or-delayed-their-child-s-scheduled-meningitis-vaccination-during-the-covid-19-pandemic-gsk-survey-shows-1/
[11] M. Taine, L. Offredo, J. Drouin, J. Toubiana, A. Weill, M. Zureik, et al. Mandatory infant vaccinations in France during the COVID-19 pandemic in 2020 Front Pediatr, 9 (2021), Article 666848, 10.3389/fped.2021.666848.
[12] R.C. Harris, Y. Chen, P. Cote, A. Ardillion, M.C. Vievera, A. Ong-Lim, et al. Lancet Reg Health West Pac, 10 (2021), Article 100140.
[13] K.A.M. Gaythorpe, K. Abbas, J. Huber, A. Karachaliou, N. Thakkar, K. Woodruff, et al.
Impact of COVID-19-related disruptions to measles, meningococcal A, and yellow fever vaccination in 10 countries Elife, 10 (2021), p. e67023, 10.7554/eLife.67023.
[14] Ministry of Health of Brazil; http://pni.datasus.gov.br
[15] da Silva TPR, Brandão LGVA, Vieira EWR, Maciel TBS, da Silva TMR, Luvisaro BMO, de Menezes FR, Matozinhos FP. Impact of COVID-19 pandemic on vaccination against meningococcal C infection in Brazil. Vaccine X. 2022 Apr; 10:100156. doi: 10.1016/j.jvacx.2022.100156. Epub 2022 Mar 19. PMID: 35340279; PMCID: PMC8933283.