Biomarcadores laboratoriais emergentes de risco cardiovascular: o uso das subfrações de lipoproteínas e outros marcadores


19.04.24

O risco cardiovascular (RCV) está intimamente relacionado a uma variedade de fatores, que atuando em conjunto, aumentam o risco da formação de placas ateroscleróticas nas artérias coronárias e em outros leitos arteriais. A maioria dos pacientes com doença cardiovascular (DCV) possui pelo menos um fator de risco estabelecido ou limítrofe, além da idade e do sexo. Uma ferramenta amplamente utilizada para estimar o RCV é o Escore de Framingham, que leva em consideração idade, sexo, pressão arterial sistólica, tratamento para hipertensão, tabagismo, diabetes e níveis de colesterol (colesterol total e HDL-c). Com base nesses fatores, o cálculo de Framingham fornece uma estimativa percentual do risco de um indivíduo desenvolver DCV nos próximos 10 anos

É importante lembrar que o Escore de Framingham é apenas uma estimativa e outros fatores individuais podem influenciar o RCV. Portanto, a avaliação de biomarcadores de RCV  permite uma abordagem personalizada para cada paciente, permitindo ao médico a adaptação do tratamento, através da escolha da terapia mais eficaz e evitando efeitos colaterais desnecessários.

A solicitação da dosagem de Proteína C-Reativa (PCR) e do perfil lipídico padrão, que consiste na dosagem direta do colesterol total (CT), HDL-c e triglicerídeos (TG), e no cálculo do LDL-c,  são comumente utilizadas para estimar o RCV. Entretanto, vários estudos vêm confirmando a importância de novos biomarcadores na avaliação do RCV e entre eles podemos destacar a avaliação das subfrações de lipoproteínas.

Essa avaliação se torna especialmente importante quando o paciente apresenta hipertrigliceridemia, resistência à insulina e diabetes, pois a dosagem do LDL-c calculado ou medido de forma direta pode subestimar a concentração total de partículas de LDL.

Nesse contexto, é importante ressaltar que o estudo ARIC (Atherosclerosis Risk in Communities) revelou que, mesmo em indivíduos considerados de baixo risco cardiovascular com base em seus níveis de LDL-c (LDL-c < 100 mg/dL), a presença de LDL-c pequeno e denso previu o risco de DCV incidente nesse subgrupo. Isso sugere que mesmo níveis mais baixos de LDL-c podem estar associados a um risco aumentado de doenças cardiovasculares.

Aplicabilidade do Subfracionamento de Lipoproteínas

Os testes de perfil lipídico avançado (PLA) com avaliação das subfrações das lipoproteínas têm sido usados para investigações médicas científicas em humanos por mais de 50 anos. O trabalho original do Framingham Heart Study e do Lawrence Livermore Study, sugeriu pela primeira vez a utilidade clínica de tais testes avançados e forneceu a base para pesquisas futuras.

Nos anos subsequentes, ensaios clínicos documentaram que aspectos desses testes contribuem com “insights” sobre o processo aterogênico que são independentes dos resultados dos testes lipídicos padrão. Vários estudos de tratamento farmacológico e de estilo de vida revelam diferenças significativas na resposta ao tratamento com base na classificação das subfrações de lipoproteínas.

O PLA, que inicialmente era disponível apenas no meio acadêmico, passou a ser oferecido pelos grandes laboratórios comerciais e pode ser utilizado nas seguintes situações:

  1. Melhor Avaliação de Risco: A tecnologia de mobilidade iônica fornece uma avaliação mais precisa do risco cardiovascular, analisando subfrações específicas de lipoproteínas.
  2. Planos de Tratamento Personalizados: monitoramento das modificações do perfil lipídico, permitindo uma avaliação da eficácia terapêutica e instituição de terapia individualizada.
  3. Reclassificação de Risco: Identificar subclasses grandes e pequenas de HDL-cajuda na reclassificação de pacientes que podem ter sido previamente classificados erroneamente usando apenas painéis lipídicos tradicionais.

 

O que é o perfil lipídico avançado?

O PLA é um teste que fornece um painel com as subfrações de lipoproteínas, além do perfil lipídico tradicional e a dosagem de apolipoproteína B (ApoB) e lipoproteína a (Lp-a), permitindo assim, uma visão ampliada dos marcadores laboratoriais relacionados à aterogênese (Figura 1).

Figura 1 – Visão geral do painel de perfil lipídico avançado

 
Como o teste é realizado?

A tecnologia de mobilidade iônica usada no PLA detecta, mede e quantifica diretamente todas as frações de lipoproteínas, também conhecidas como fracionamento de lipoproteínas, para uma avaliação mais precisa do risco cardiovascular.

De forma prática, um valor aumentado de partículas de LDL-c pode ser o resultado de:

- um grande número de partículas grandes de LDL-c ,ou

- um grande número de partículas pequenas de LDL-c.

Todas as partículas de LDL-c são aterogênicas, mas as partículas pequenas de LDL-c são consideradas mais aterogênicas (Figura 1). Portanto, o conhecimento da contribuição da subclasse individual de LDL-c para o número total de partículas de LDL-c ajuda o clínico a interpretar o resultado do número total de partículas de LDL-c.

No que se refere ao fenótipo do LDL-c, descrevem-se dois padrões. No padrão A observar-se um predomínio de partículas grandes de LDL-c, ao passo que no padrão B predominam partículas de LDL-c pequenas e densas, o que sugere um fenótipo mais aterogênico.

Figura 1 – Imagem esquemática dos padrões de subtipos de LDL

Fonte: Daoud et al, 2014

Com relação ao HDL-c, são identificadas 2 subclasses: a de partículas grandes de HDL-c e a de partículas pequenas de HDL-c. Essas partículas maiores são funcionalmente associadas à atividade antioxidante e proteção da parede arterial. Estudos demonstram que a redução desta subclasse está associada com um aumento no RCV.

Diversos estudos demonstram que as subfrações de lipoproteínas são fatores de RCV independentes dos fatores de risco tradicionais. Dessa forma, os resultados fornecidos pelo PLA possibilitam que o clínico realize um estudo mais acurado de marcadores laboratoriais de RCV intimamente relacionados com o processo de aterosclerose e defina as melhores estratégias de tratamento.

Outros marcadores emergentes

Anticorpos contra LDL oxidada

Em pacientes com doença arterial coronariana (DAC), um título elevado de anticorpos contra LDL-c oxidada é capaz de prever  de forma independente a progressão da aterosclerose ao longo de seis meses.

Trimetilamina-N-óxido (TMAO) 

A TMAO, produzida através do metabolismo microbiano intestinal da lecitina dietética, parece contribuir para o desenvolvimento de placas ateroscleróticas através de suas interações com macrófagos e células espumosas.

No estudo de Tang et al., os níveis de TMAO foram medidos em uma coorte de 4007 pacientes (idade média de 63 anos, 64% do sexo masculino) que se submeteram à angiografia coronária eletiva (74% dos pacientes tinham uma ou mais artérias coronárias com estenose de 50% ou mais) e foram seguidos por uma média de três anos. Após ajustar para fatores de RCV padrão, níveis aumentados de TMAO plasmático foram associados a um risco significativamente maior de morte, infarto ou acidente vascular encefálico.

Em uma revisão sistemática e metanálise de 26.167 pacientes de 17 estudos, com um acompanhamento médio de 4,3 anos, altos níveis de TMAO foram associados a um risco aumentado de morte por todas as causas (RR 1,9, IC 95% 1,4-2,6), embora com um alto grau de heterogeneidade entre os estudos. O risco de eventos cardíacos adversos maiores também foi significativamente maior entre os pacientes com altos níveis de TMAO (RR 1,7, IC 95% 1,3-2,1).

Dada a associação entre os níveis de TMAO e eventos ateroscleróticos, bem como o potencial para modificação dos níveis de TMAO com base na microbiota intestinal, os níveis de TMAO podem ser um alvo futuro para terapias destinadas a reduzir o risco de eventos ateroscleróticos.

Enzima conversora de angiotensina 2 

Em uma análise global, baseada numa coorte de mais de 10.000 pessoas, analisando dados do estudo Epidemiologia Prospectiva Urbana Rural (PURE) com um acompanhamento de nove anos, níveis plasmáticos mais altos da enzima conversora de angiotensina (ECA) 2 foram associados a um maior risco de morte cardiovascular, bem como acidente vascular encefálico e infarto do miocárdio, independentemente de idade, sexo, ancestralidade, pressão sistólica, colesterol não-HDL, tabagismo e diabetes.

Conclusão

A identificação e compreensão de novos marcadores de RCV, são fundamentais para a evolução do tratamento das DCV. Estes marcadores podem ajudar a prever o risco de eventos cardiovasculares, como infarto do miocárdio e acidente vascular encefálico, independentemente de outros fatores de risco conhecidos. Além disso, a possibilidade de modificar os níveis desses marcadores, abre novas perspectivas para terapias direcionadas para reduzir o risco de eventos ateroscleróticos.

Embora esses achados precisem ser replicados em outras populações, eles destacam a importância da pesquisa contínua para descobrir e entender novos marcadores de RCV. Esses avanços podem levar a melhores estratégias de prevenção, diagnóstico mais precoce e tratamentos mais eficazes para DCV no futuro.

Códigos dos exames no Laboratório Richet

Perfil lipídico avançado – NMP

Anticorpos contra LDL oxidada – LDLPE

Trimetilamina-N-óxido – TMAO

Enzima conversora de angiotensina 2 - ECA

 

REFERÊNCIAS

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Dra. Paula Bruna Araújo
Endocrinologia / Assessoria ao Médico – Richet
CRM 52.82150-0