Calprotectina


24.10.16

 

 As Doenças Inflamatórias Intestinais (DII) compreendem um grupo específico de doenças, tendo como principais a Doença de Crohn (DC), a Colite Ulcerativa (CU) e a Colite Indeterminada (CI). Estas doenças podem ser provenientes de respostas exacerbadas, inatas ou adquiridas, em indivíduos geneticamente predispostos, a determinados microrganismos comensais. Atualmente, a incidência destas doenças vem crescendo em todo o mundo. A origem étnica, o estilo de vida, certas regiões geográficas e a presença de regiões suscetíveis em pelo menos 12 cromossomos, têm grande influência no surgimento da doença. A diferenciação entre DII e Doenças Intestinais Funcionais (DIF), como a Síndrome do Intestino Irritável (SII), pode ser complexa, já que apresentam sintomatologia bastante semelhantes, incluindo diarreia, dor e distensão abdominal. Em muitos dos casos, existe a necessidade de aplicação de métodos mais invasivos, como a colonoscopia com biópsia e exame histopatológico. Adicionalmente, apesar da distinção entre DC e CU ser normalmente clara, cerca de 10 – 20% dos casos podem ser classificados como colite indeterminada (CI). A utilização de métodos menos invasivos vêm ganhando maior atenção nos últimos anos. Os biomarcadores para DII, incluindo os sorológicos, os fecais e os de predisposição genética (polimorfismos), têm se tornado úteis ferramentas para o auxílio diagnóstico (principalmente de exclusão), determinação de atividade da doença, acompanhamento terapêutico e prognóstico. Dentre diversos marcadores que já foram propostos para esta finalidade, são destacados os realizados em amostras de fezes, já que estão mais diretamente ligados à atividade intestinal e também porque são totalmente não invasivos. Dentre estes, a Lactoferrina e a Calprotectina são os mais utilizados. Os marcadores sorológicos, que talvez sejam melhores definidos como sanguíneos, podem incluir desde os menos específicos, como a dosagem da Proteína C-Reativa (PCR) e a velocidade de hemossedimentação (VHS), até outros mais específicos, porém menos sensíveis como a pesquisa de anticorpos contra Saccharomyces cerevisiae (ASCA), anti Ompc (bacterial Outer Membrane Porin), anti-I2 e antiflagelina bacteriana (CBir 1). Todos estes anticorpos são encontrados predominantemente em Doença de Crohn (DC) e não em Colite Ulcerativa (CU), com exceção do ASCA, que pode estar presente em até 5% dos casos de CU. Outro marcador sanguíneo que também tem sido usado é a pesquisa de anticorpos anticitoplasma de neutrófilos periféricos (p-ANCA), que pode estar presente em até 70% dos pacientes com CU e em até 20% dos pacientes com DC, mas, assim como os outros acima citados, apresenta também baixa sensibilidade. A Calprotectina foi descrita pela primeira vez em 1980, por Fagerhol MK et al. Ela é uma proteína ligada ao cálcio e ao zinco, que são abundantes no citoplasma dos neutrófilos e, em menor quantidade, também no de monócitos e macrófagos reativos. As funções conhecidas da Calprotectina estão todas associadas aos processos de defesa, como a inibição da ação das metaloproteinases (atividade antibacteriana e antifúngica), através da ação do zinco. A Calprotectina pode ser detectada em praticamente todos os líquidos biológicos e a sua concentração está diretamente correlacionada ao grau de inflamação na amostra. Em amostras de fezes, a Calprotectina se apresenta como um bom marcador biológico por permanecer estável por até sete dias à temperatura ambiente, se conservando resistente à ação bacteriana, e também por se apresentar uniformemente distribuída na amostra, de modo que dosagens feitas em amostras de fezes ocasionais não diferem das dosagens feitas em períodos mais longos, como as colhidas por 24 horas. A inflamação é caracterizada por um aumento da atividade das células do sistema imunológico (como os granulócitos), que liberam substâncias com função de defesa, como a Calprotectina. Na inflamação intestinal, a barreira da mucosa intestinal é quebrada e ocorre a migração de leucócitos para o lúmen intestinal, levando à elevação da concentração de Calprotectina nas fezes, que se correlaciona diretamente com a quantidade de granulócitos e outras células de defesa no intestino. Por este motivo, as concentrações de Calprotectina se encontram elevadas em DII e também, em menor proporção, em outras situações, neoplasias e pólipos. Os níveis de Calprotectina nas fezes são cerca de 6 vezes maiores do que os encontrados no sangue, o que a torna um bom marcador de inflamação intestinal. Em um estudo publicado em 2005, Silberer H et al, compararam diversos marcadores fecais provenientes de leucócitos, como Calprotectina, Lactoferrina, Lisozima, Mieloperoxidase e Elastase, e concluíram que a Calprotectina e a Elastase eram os únicos capazes de diferenciar Doença Intestinal Inflamatória (DII) de Síndrome do Intestino Irritável (SII), além de apresentarem boa correlação com o grau de inflamação. Em uma publicação de 2013, Montalvo M. et al, fizeram a descrição comparativa entre todos os estudos sobre a utilização da Calprotectina em DII, publicados até Dezembro de 2011, através do MEDLINE, e chegaram às conclusões de que, apesar de não existir ainda consenso sobre a utilidade diagnóstica da Calprotectina, dentre todos os marcadores não invasivos estudados, é o que ainda apresentava melhor performance. Como teste de diagnóstico de DII, a Calprotectina mostrou, nos estudos de metanálise analisados, boa performance, com sensibilidade entre 93% e 95% e especificidade entre 91% e 96%. Nestes estudos, também foi observado o valor de 100 µg/g fezes como melhor para a discriminação entre os pacientes positivos dos negativos. Também em amostras pediátricas, a Calprotectina se mostra um marcador bastante sensível, atingindo índice de até 100% em grande parte deles, com especificidade aproximada de 96%. Os autores indicam que a Calprotectina pode ser utilizada para a discriminação entre os pacientes que necessitam de estudos mais invasivos como a colonoscopia e que, quando utilizado um ponto-de-corte de 50 µg/g fezes, a colonoscopia pode deixar de ser feita em até 50% dos pacientes, indo até 67% dos pacientes, quando utilizado o ponto-de-corte de 100 µg/g fezes; o que corresponde a uma economia de até € 2,13 bilhões por ano. Entretanto, nesses mesmos estudos foi observado que com a utilização da Calprotectina poderia ter sido deixado de ser feito o diagnóstico em 6% dos adultos e 8% das crianças. Também foram observadas as limitações do teste, que pode se apresentar alterado em outras condições, como infecções gastrointestinais, enteropatia induzida por antinflamatórios não esteroides e malignidade. Como marcador de atividade de doença, estudos comparando a dosagem de Calprotectina fecal com colonoscopia e resultado das biópsias, a classificam como o melhor biomarcador. Sipponen et al, estudando 74 pacientes com Doença de Crohn acharam índices de sensibilidade e especificidade de 70% e 92%, respectivamente, para a predição de doença endoscópicamente ativa. Na Colite Ulcerativa, Schoepfer et al, estudando um grupo de 134 pacientes, encontrou índice de sensibilidade de 89% na dosagem de Calprotectina, comparando com os achados endoscópicos. Em crianças, a correlação histológica e colonscópica foi de 94% de sensibilidade e 64% de especificidade, em um grupo de 58 pacientes com Doença de Crohn e Colite Ulcerativa, índices superiores aos da PCR e VHS (44% e 82%, 42% e 68% de sensibilidade e especificidade, respectivamente). Outros estudos mostraram não haver consenso sobre a utilidade da Calprotectina para a localização da doença (ileal ou colônica). Em relação à resposta terapêutica e também ao prognóstico (probabilidade de relapso), a maioria dos estudos aponta a Calprotectina e a Lactoferrina fecais, como os melhores marcadores biológicos para esta finalidade; entretanto, os autores que fizeram a comparação de vários estudos, observam a necessidade de um estudo randomizado com um “n” mais relevante de sujeitos. Erbayrak M et al, estudando 65 pacientes com DII, comparando a dosagem de Calprotectna fecal VHS e PCR, concluíram que ela estaria fortemente associada à inflamação colorretal, indicando doença orgânica, e que poderia ser utilizada como avaliação de resposta terapêutica, rastreamento de pacientes assintomáticos e predição de relapso de DII. Importante também que sejam destacadas as limitações da utilização da dosagem de Calprotectina fecal, principalmente as apontadas por Turkay et al:

  • Apesar de muitos estudos não apontarem elevações de Calprotectina com a utilização de baixas doses de aspirina, existe a possibilidade de ocorrerem elevações com o uso de Antinflamatórios Não Esteróides (AINE) devido à Enteropatia Induzida por AINE em pacientes sem DII.
  • Qualquer sangramento acima de 100 ml, incluindo a menstruação, pode causar a elevação de Calprotectina fecal.
  • Alguns autores apontam a possibilidade de variabilidades intraindividuais causadas por diferentes situações clínicas na dosagem de Calprotectina fecal.
  • Pelo fato de a Calprotectina poder ser apresentar elevada em qualquer situação na qual ocorra a migração de leucócitos para o intestino, outras condições diferentes de DII devem sempre ser afastadas, como neoplasmas e infecções.
  • A utilização de diferentes metodologias (ex: EIA x ELiA) pode produzir resultados que não sejam diretamente equivalentes, em termos quantitativos.

Nos últimos anos, foram desenvolvidos diversos testes comerciais para a dosagem de Calprotectina Fecal, alguns até para utilização conhecida como “point-of-care” ou de utilização “`a beira do leito”, que proporcionam resultados semi-quantitativos rápidos. Entretanto, existem dois tipos de técnicas mais utilizadas: A técnica por Enzimaimunoensaio (EIA), realizada através de procedimentos manuais ou adaptados a equipamentos semi-automatizados e a técnica ELiA desenvolvida para um determinado equipamento, totalmente automatizada. Não existe ainda consenso absoluto sobre o ponto-de-corte utilizado para a dosagem, entretanto, em ambas as técnicas, existe a recomendação de 50 µg/g fezes como valor a se determinar a positividade ou negatividade das amostras. Na literatura em geral, existem valores arbitrários indicando: < 50 µg/g como negativo, 50 – 100 µg/g como positivo fraco e > 100 µg/g fezes como positivo. É, ainda, muitíssimo importante se ter em mente que, apesar das diferentes técnicas medirem a mesma substância, existem diferenças analíticas entre os testes, que tornam os seus resultados pouco comparáveis entre si quantitativamente para fins de acompanhamento dos pacientes, sendo portanto, extremamente importante, a descrição da metodologia utilizada, no laudo laboratorial. Em conclusão, a dosagem de Calprotectina fecal é um método não invasivo, de fácil realização e já adaptado para plataformas automatizadas. Apesar de a maioria dos estudos apontar a dosagem de Calprotectina como uma importante ferramenta para o diagnóstico, acompanhamento, controle terapêutico e prognóstico, as suas limitações, o fato de não ser totalmente específico para este tipo de doença e a falta de estudos maiores e mais controlados, ainda limita a sua utilização apenas como teste complementar a outros procedimentos. A utilização deste parâmetro vem crescendo nos últimos anos e a sua adaptação a equipamentos totalmente automatizados o tornam um método mais simples e preciso, que tende a ganhar cada vez mais espaço como ferramenta ao apoio diagnóstico. Por: Helio Magarinos Torres Filho Patologia Clínica – Medicina Laboratorial / Diretor Médico do Laboratório Richet - RJ Referências:

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